Powered By Blogger

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Estresse crônico prejudica a memória

Extraído de O Globo



Estresse crônico e a memória

Quem vive sempre estressado também pode ficar mais esquecido. Em um experimento realizado com camundongos, pesquisadores da Universidade do Estado de Ohio, nos EUA, mostraram como o estresse crônico afeta temporariamente a memória de curto prazo, com o sistema imunológico desempenhando um papel fundamental neste processo. Agora, os cientistas esperam que a descoberta ajude no desenvolvimento de novos tratamentos que combatam as consequências de estresse pós-traumático, ansiedade, depressão ou da simples pressão do dia a dia nas lembranças das pessoas.

Na experiência, os cientistas liderados por Jonathan Godbout, professor de neurociência da universidade americana, submeteram camundongos que viviam em pequenos grupos em gaiolas a invasões diárias de um agressivo macho alfa da mesma espécie no seu ambiente. Depois de seguidas exposições a essa situação, conhecida como repetida derrota social (RSD, na sigla em inglês) e muito usada como modelo animal para o estresse crônico em humanos, os roedores tiveram dificuldades para escapar de um labirinto que já tinham resolvido antes daquele período estressante.

— Isto é estresse crônico, não é apenas o estresse de ter que falar em público ou conhecer uma pessoa nova — destaca Godbout, também principal autor de artigo sobre o estudo, publicado no periódico científico “The Journal of Neuroscience”. — Os camundongos estressados simplesmente não lembravam (da saída do labirinto). Já quando não estavam estressados, eles prontamente se recordavam.


Mudanças químicas e biológicas no cérebro

Além de estabelecer pela primeira vez uma relação direta entre a memória de curto prazo e o estresse prolongado, os pesquisadores analisaram as mudanças na química e biologia do cérebro dos camundongos, identificando uma série de alterações. Entre elas, os cientistas viram um aumento na presença de células do sistema imunológico, chamadas macrófagos, no órgão — numa evidência de um processo inflamatório como resposta à pressão externa. E isso aconteceu em especial no hipocampo, região do cérebro que se sabe profundamente envolvida na formação e recuperação de memórias.

Os cientistas verificaram ainda que o estresse crônico afetou a neurogênese, isto é, o desenvolvimento de novos neurônios no cérebro. Focada no hipocampo, essa parte do estudo não detectou mudanças no número das chamadas células progenitoras de neurônios na região após as experiências estressantes diárias dos camundongos. Ainda assim, eles viram que depois de dez e 28 dias do experimento, a diferenciação dessas células em neurônios maduros foi prejudicada.

Por fim, os pesquisadores observaram que os problemas com a memória espacial dos camundongos estressados desaparecia espontaneamente após 28 dias. Eles, no entanto, continuaram a exibir atitudes de fuga de situações sociais, uma medida de comportamentos depressivos mesmo após esse período de quatro semanas. Diante disso, os cientistas administraram compostos anti-inflamatórios nos roedores. Com isso, eles inibiram a inflamação no cérebro, controlando a perda de memória, mas não conseguiram obter nenhum efeito no desenvolvimento dos neurônios nem melhora nos sintomas de depressão, numa indicação de que a ação do sistema imunológico no hipocampo afetava sua capacidade de encontrar a saída do labirinto.

Segundo os pesquisadores, a confirmação tanto do impacto do estresse na memória de curto prazo quanto do papel do sistema imunológico nesse processo abre caminho para o desenvolvimento de tratamentos e terapias para combater o problema.

Diretora do Instituto de Psicologia e Controle do Stress (IPCS), a psicóloga Marilda Lipp conta já ter ouvido muitas reclamações de pacientes sobre episódios de esquecimento no dia a dia da sua prática clínica. Segundo ela, por vezes o efeito desses casos pode ser “devastador”.

— A principal dificuldade que vejo nos pacientes estressados é no resgate da memória, aquela latente e que não fica acessível na hora que a pessoa quer ou precisa — diz. — São por vezes informações básicas, como esquecer de passar no banco, um número de telefone ou onde estão as chaves de casa ou do carro. E quanto mais nervosa está a pessoa e mais tempo se passou, mais difícil fica recuperar essa informação.

Marilda, no entanto, não acredita que o problema possa ser resolvido com uma pílula, mesmo com essa descoberta. Para a psicóloga, o melhor caminho é a terapia, isto é, a pessoa aprender a lidar com as adversidades ou percebê-las como menos agressivas, sem desencadear a produção dos hormônios do estresse, como o cortisol, que afetam não só o cérebro como prejudicam outras partes do corpo, levando a problemas cardíacos e depressão, por exemplo.

— O que podemos é interpretar o que acontece ao nosso redor de maneira menos estressante, lidar com os eventos de forma a não ativar a produção de cortisol — considera. — A beleza da terapia é justamente essa: colocar a mente para trabalhar em prol do corpo. A melhor prevenção contra o estresse é psicológica, emocional.


Novos fármacos e tratamentos

Já Mario Jurena, coordenador do Programa de Assistência, Ensino e Pesquisa em Estresse, Trauma e Doenças Afetivas (EsTraDA) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, e atualmente professor convidado do Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociências do King's College de Londres, destaca como o estudo ligou a inflamação no cérebro aos efeitos na memória, uma linha de pesquisa cada vez mais importante na área de neurociências.

— É um trabalho muito bonito, com a utilização de diferentes estratégias metodológicas para abordar uma questão complexa, como biologia molecular, imuno-histoquímica, análise morfológica e analises comportamentais — elogia. — Muito já se sabe dos efeitos do estresse sobre a vulnerabilidade para quadros psiquiátricos, e esse trabalho agrega mais informações neste enorme quebra-cabeças, especialmente sobre os efeitos da neuroinflamação em aspectos comportamentais e cognitivos.

E Jurena também concorda com os pesquisadores americanos quanto à possibilidade da descoberta levar à criação de medicamentos que protejam a memória dos efeitos do estresse, embora lembre que isso ainda deverá demorar.

— Sem dúvida que o grande anseio dos pesquisadores é elucidar os mecanismos biológicos envolvidos nas doenças do cérebro, de forma que esses mecanismos possam se tornar alvos de novos fármacos, mais eficientes que os atualmente disponíveis — diz. — Entretanto, esse é um caminho longo e árduo. Por isso, o incentivo à pesquisa básica é essencial para o progresso da medicina.

Nenhum comentário:

Postar um comentário