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domingo, 16 de agosto de 2015

Onças-pintadas para proteger lavouras



Fazendeiros favorecem volta de felinos ao cerrado brasileiro para proteger as culturas


     Por: Brendan Borrell 

                                                                                 

Certa tarde, em fevereiro, Margie Peixoto circulava de picape por sua fazenda no Mato Grosso do Sul, quando notou alguns pés de milho quebrados e avistou um trio de queixadas (Tayassu pecari) caminhando sossegadamente ao longo da estrada de terra avermelhada como se fossem seus proprietários.

Assim que esses parentes de porcos-selvagens viram o veículo, eles bufaram, grunhiram e sumiram em meio à plantação, onde provavelmente havia mais algumas dezenas deles escondidos.

“A cada ano que passa o grupo cresce, e todos os anos os danos à cultura são maiores”, queixou-se Peixoto.

Originária do Zimbábue, essa mulher ativa, de meia-idade, conheceu seu marido brasileiro enquanto viajava pela África, e veio para cá há mais de 30 anos para se dedicar à agricultura.

Ela calcula que queixadas destruíram cerca de 10% de sua safra do ano passado, totalizando perdas de R$ 250 mil (algo em torno de atuais US$ 83 mil). Além disso, queixadas, que podem ser extremamente agressivos e imprevisíveis, mataram o cão da família.

Peixoto não está só em sua preocupação.

Marcos da Silva Cunha, diretor do Parque Nacional das Emas, ali nas proximidades, informou que os bandos de queixadas nas áreas agrícolas da região podem chegar a 80 ou 100 indivíduos, em comparação com meros 40 animais observados em seu habitat natural.

Reguladores ambientais brasileiros concordam que a explosão populacional é um problema sério, que eles ainda não foram capazes de resolver.

Caçar os animais não é a resposta, já que queixadas são protegidos dentro e fora do parque nacional.

Por essa razão, alguns conservacionistas e fazendeiros propuseram uma medida surpreendente para controlar a proliferação dos destrutivos “pecaris”: uma iniciativa que incentiva populações maiores de onças-pintadas e onças-pardas.

Leandro Silveira, presidente do Instituto Onça-Pintada (IOP), confirma que os grandes felinos costumavam ser perseguidos por criadores de gado, mas sua pesquisa com animais portadores de coleiras radiotransmissoras mostrou que eles são capazes de rondar por canaviais e encontrar refúgio em cursos d’água margeados por vegetação.

“Onças-pintadas estão se reproduzindo todos os anos nessa paisagem agrícola”, observou. “Elas estão vivendo todo o seu ciclo de vida fora do parque”.

Silveira está dialogando com fazendeiros e com a Odebrecht, o conglomerado brasileiro de petróleo, engenharia e agricultura que é proprietária de grande parte da área cultivada, para que eles abracem um sistema de certificação chamado “amigos da onça”.

De acordo com os termos do programa de baixo custo, fazendeiros seriam obrigados a manter uma determinada área de habitat de onças em suas propriedades com forte interligação com outras áreas para o mesmo fim, além de se comprometer a não perseguir grandes felinos, nem suas presas, os queixadas ou pecaris.

Em contrapartida, as onças controlariam naturalmente a população de porcos-selvagens, reduzindo os danos às lavouras.

Margie Peixoto gosta da ideia.

Sua fazenda de soja, milho e gado, de 3.800 hectares, fica nos limites do Parque Nacional das Emas, uma mescla de cerrado e floresta que tem sido comparada às savanas das planícies africanas, graças à sua abundante e carismática vida selvagem.

Com poucas árvores para obstruir a vista, esse é um dos melhores lugares do país para observar antas (Tapirus terrestris), tamanduás-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), lobos-guará (Chrysocyon brachyurus), e, é claro, emas (Rhea americana), as enormes aves terrestres aparentadas com a avestruz [ou seja, que não voam].

O parque nacional abrange a maior área intacta remanescente de cerrado na região e está isolado, cercado por todos os lados por plantações de soja, milho e cana-de-açúcar que se estendem até a linha do horizonte.

Embora a conversão de pastagens para o cultivo de cana e outras monoculturas na propriedade de Peixoto tenha contribuído para a degradação do ecossistema do cerrado, ela e seu marido se consideram amantes da natureza, e estão dispostos a dar todo apoio ao retorno dos grandes felinos.

“Praticamos boas técnicas agrícolas. Não aramos, nem subsolamos [fazem plantio direto]. Somos muito cuidadosos com nossas pulverizações e com os produtos que usamos”, enfatizou.

Mais de um terço de sua fazenda permanece em estado natural, o que está acima do mínimo de 20% exigido por lei. “Poderíamos obter permissão/licença para derrubar tudo isso e plantar soja. Mas não queremos. Gostamos de ter terra bruta”.

Do que ela não gosta é dos queixadas.

“Fazemos a nossa parte”, salientou; “por que eles não fazem a deles?”

Peixoto se refere aos reguladores ambientais, inclusive ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), e ao braço administrativo do Ministério do Meio Ambiente — o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Recentemente, esse órgão do governo vetou uma proposta, bastante popular entre fazendeiros, para capturar queixadas jovens, criá-los em cativeiro, e abatê-los por sua valiosa carne.

É por essa razão que o plano de certificação “amigo da onça” para incentivar a conservação de habitats de grandes felinos em terras agrícolas está recebendo o apoio de fazendeiros.

Além disso, o programa pode ser crítico para salvaguardar o futuro do ameaçado bioma do cerrado brasileiro e de sua rica biodiversidade.

Marcos Cunha, o diretor do Parque Nacional das Emas, também quer reduzir naturalmente o número de queixadas.

“O excesso [de animais] da espécie não é bom para o parque”, sentenciou.

De fato, os pecaris reviram toda a vegetação, chafurdam e se espojam na lama, e perturbam as sensíveis nascentes naturais pelas quais o parque é tão conhecido.

“O Parque das Emas serve como cabeceira para vários rios brasileiros, inclusive o Araguaia, que percorre 2.626,5 km antes de desaguar no Amazonas”.

Em resposta à crescente população de queixadas, Cunha vem observando um aumento na caça ilegal dos animais, e investigou dois casos de fazendeiros que envenenaram bandos inteiros desses parentes de porcos selvagens.

Ele salienta que, embora queixadas sejam superabundantes nas proximidades do Parque das Emas, os animais são classificados como ameaçados de extinção no cerrado e já estão extintos em vários outros parques nacionais, inclusive no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, e no Parque Nacional da Serra da Canastra, em Minas Gerais.

“Só o Emas tem um excedente”, resumiu.

Mas Cunha discorda que controlar queixadas seja sua responsabilidade. “Isso não é só um problema do parque; é um problema do homem e da Natureza”, insiste.

Ele rastreou a superpopulação dos porcos-selvagens até o explosivo crescimento das fazendas de cana-de-açúcar ao longo dos últimos oito anos.

A partir da década de 70, a terra ao redor do Parque das Emas foi convertida em pastagens e, mais tarde, em lavouras de milho e soja.

Em 2007, o conglomerado Odebrecht, que registra se orgulha de receitas anuais da ordem de US$ 30 milhões, começou a comprar terras agrícolas ao redor da reserva. Hoje, a empresa opera três usinas de etanol de açúcar em cidades ao norte, sul e leste do parque, além de ser proprietária de 135 mil hectares de terra ali.

Embora queixadas antes emergissem do parque nacional para saquear (ou, melhor, devastar) culturas de milho, Cunha argumenta que, agora, a cana-de-açúcar lhes permite sobreviver durante o ano todo além de seus limites demarcados.

Depois que um incêndio florestal, em 2010, arrasou 90% das terras do parque, animais selvagens tornaram-se ainda mais dependentes de fazendas vizinhas.

A Odebrecht nega que a agricultura tenha interferido negativamente no equilíbrio ecológico.

Em uma declaração ao site mongabay.com eles escreveram que “não há nenhuma evidência científica para indicar o crescimento populacional de queixadas nos canaviais”, e que “atividades agrícolas não levaram ao desaparecimento excessivo de nenhuma espécie”.

Silveira concorda que a população de queixadas era muito grande bem antes da chegada da cana.

“O problema dos pecaris tem a ver com o milho, não com a cana”, rebateu.

“E ele ficou pior de ano a ano, porque a população dos animais está crescendo. É um problema matemático básico”, sumarizou.

Qualquer que seja a causa, Silveira continua negociando com a Odebrecht e os fazendeiros para conquistar sua aceitação da ideia de uma certificação dos “amigos da onça”.

Por outro lado, sua defesa de uma monocultura como a cana como meio para promover a volta dos grandes felinos é uma posição bem impopular entre alguns conservacionistas.

Cunha, por exemplo, acredita que a noção é míope.

“Monoculturas provocam desequilíbrio”, criticou. Certamente, espécies como queixadas e onças se beneficiam de [plantações] de cana, mas outras espécies sofrem, acrescentou.

Densos canaviais, por exemplo, agem como barreiras para emas, apontou ele.

Em vez disso, ele sugeriu gerir o problema através de uma combinação de cercas melhores, alimentação suplementar de pecaris dentro do parque, e esterilização, mas ele não dispõe dos fundos, nem tem o poder para executar essa proposta.

O Parque Nacional das Emas, joia do bioma do cerrado, sofre perpetuamente de falta de verbas.

Embora seus 1.320 km2 tenham sido designados como Patrimônio Natural Mundial pela UNESCO, em 2001, seus caminhos concretados estão desmoronando.

A guarita e o centro de visitantes estão vazios porque o parque não pode se dar ao luxo de pagar funcionários para trabalhar ali, e uma torre de observação de madeira foi fechada por tempo indeterminado por falta de dinheiro para manutenção/reparos.

Em contrapartida, parques nacionais e estaduais no estado do Amazonas se beneficiam do Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), que recebeu US$ 200 milhões do Banco Mundial, World Wildlife Fund (WWF), e da Fundação Ford.

Por ora, fazendeiros estão otimistas em relação ao programa de Silveira porque ele não depende do governo, nem dos caprichos de financiadores internacionais.

Margie Peixoto preferiria ter predadores felinos vagueando pela paisagem que queixadas que destroem suas culturas.

“Tivemos ocasiões em que onças-pardas mataram algumas de nossas vacas”, observou ela, acrescentando: “mas isso não é uma perda grande quando você leva em conta que eles matam os porcos selvagens”.

Silveira espera que, se tudo der certo, tanto a cana-de-açúcar como os pecaris, comprovadamente uma péssima combinação para fazendeiros locais, podem se transformar em uma dádiva para grandes felinos e outros animais selvagens.

“Estou muito otimista”, anunciou ele. “Se o habitat estiver bem conectado/interligado, ele poderia conservar toda a nossa fauna do cerrado intacta”.

Publicado em Scientific American

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